Sobre Violência e Redução da Maioridade
A cada dia ficamos mais indignados com as notícias divulgadas pela imprensa sobre crimes envolvendo menores de dezoito anos. A sensação de impunidade que sempre imperou nesse país fez surgir um movimento pela redução da maioridade. Mas, não podemos esquecer de que a nossa sociedade sempre viveu momentos de intensa violência, em todos os sentidos, ao longo dos tempos, e que os menores, além de agressores, também são vítimas dentro de um contexto perverso. Contudo, esse texto não se trata de um manifesto contra ou a favor da redução da maioridade, apenas quero trazer algumas reflexões que considero pertinentes ao assunto, a fim de que possamos entender melhor o que de fato contribui para esse triste cenário.
Por falar em momentos de intensa violência nesse país, um dos mais tristes fatos sociais que até sinto vergonha de lembrar é a escravidão. Porque não consigo conceber como alguém se acha no direito sagrado de ser dono de outra pessoa. Como se essa pessoa fosse uma coisa qualquer. Pensar que um dia alguém com dinheiro foi a uma feira para comprar uma pessoa. Dá pra imaginar? E tudo isso, inclusive, sob a indiferença da Igreja e devidamente justificado pelo Estado, com registro em cartório público e tudo. Eu sei que talvez você deva estar se perguntando o que é que esse assunto tem a ver com a redução da maioridade. E eu vou explicar.
A escravidão só acabou nesse país por causa das pressões internacionais. Apenas por conta das pressões oriundas da comunidade internacional, o Brasil começou a refletir um pouco melhor sobre a sua sociedade escravocrata. Mas, não foi tão simples assim. Porque o Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão em seu território. O Brasil resistiu o quanto pode para continuar com tamanha desfaçatez. Porque foram muitos os que enriqueceram, criaram fortunas às custas do trabalho dos escravos. Porque os escravos não tinham direito a nada, nem a sua própria vida. A vida dos escravos era como objetos dispostos à vontade dos respectivos donos. Até os filhos dos escravos pertenciam aos senhores. Muitas vezes foram vendidas crianças separadas dos seus pais.
Quem comprava um escravo adquiria também o direito de dispor de sua vida como melhor lhe conviesse. Quem não obedecesse ou não satisfizesse as vontades e os caprichos dos seus donos seria cruelmente castigado. E, quem tentasse fugir dessa roda social de injustiças, seria caçado como um animal por um capitão do mato e, quando pego, seria torturado e morto para servir de exemplo diante dos demais escravos, a fim de desestimular suas tentativas de escapar do inferno que era a escravidão.
Mesmo a contragosto, um dia o Brasil aderiu à abolição e declarou a libertação das pessoas escravizadas. Em princípio, parece que no nosso país começava a se construir uma nova realidade social. Uma sociedade mais justa e mais igualitária, dando o direito de cidadania aos negros arrancados dos seus países e aqui escravizados por tanto tempo. Mas, a história nos mostra que não foi bem assim. Porque nesse país, a escravidão apenas mudou de feição, porque a exploração continuou e ainda permanece viva até os dias atuais. Enganam-se os que acreditam que a escravidão acabou de fato. Na verdade, os escravos foram libertos, mas continuaram carregando o estigma do preconceito social. Entre aqueles libertos que optaram em aqui permanecer, muitos continuaram a servir seus antigos donos em troca de míseros trocados ou de um prato de comida e um local para dormir à noite. Porque eram pessoas analfabetas, que não tinham nada, não sabiam ler nem escrever. Poucos conheciam alguma coisa além dos confins das terras onde trabalhavam. Sabiam apenas trabalhar na lavoura e tinham medo de enfrentar a fúria daqueles que discordavam da abolição e continuaram perseguindo os negros. Muitos outros negros decidiram sair das lavouras e ocuparam os morros das grandes cidades. Lá fincaram moradia e construíram comunidades às quais hoje conhecemos como favelas, passando a viver em precárias condições, à margem do estado e da sociedade que sempre os exploraram, e que agora os excluía. A divisão social perversa se manteve, de maneira que os ricos continuaram cada vez mais ricos, explorando os ex escravos, agora denominados pobres assalariados, sem eira nem beira.
Essa tremenda injustiça social criou o menor carente, as famílias excluídas da proteção e do cuidado do estado e da sociedade, estabelecendo um campo fértil para o separatismo e para os conflitos entre as classes. De um lado, os ricos e poderosos, as famílias abastadas, com direito a estudar em boas escolas e à formatura em faculdades no exterior. Do outro, os pobres e miseráveis, remanescentes da escravidão, sem bens, sem teto, sem direitos a estudar, sem respeito e sem dignidade, tentando sobreviver em condições completamente adversas, tendo que concorrer com os italianos imigrantes que jamais sofreram as dores sofridas pelos escravos Essa é a realidade na qual se desenvolveu a nossa sociedade moderna e cheia de religiosidade e de homens ditos probos.
Ao longo dos anos, essas diferenças só se acentuaram e foram ficando cada vez mais evidentes. Até que hoje temos um quadro caótico, marcado por violências em níveis alarmantes, que remontam a um passado cheio de iniquidades e soberba, concebido por uma classe dominante hipócrita e insensível ao que acontecia. Sem os investimentos e sem os fundamentais cuidados básicos que o estado deveria ter dado no momento certo e oportuno, lá trás, ainda quando essa triste realidade começava a se desenvolver, a indiferença foi construindo aos poucos uma sociedade separada em classes, numa sociedade dividida entre exploradores e explorados, entre pobres e ricos, entre milionários e miseráveis, entre os que possuem tudo e os que querem apenas possuir alguma coisa para sobreviver, porque não possuem nada. Forjamos adversários marcados por revoltas e várias formas de violências ao longo da nossa história foram sendo reveladas, por conta de uma luta desigual em busca da satisfação das necessidades básicas e dos direitos humanos relegados pelo próprio estado. A ausência do estado e a falta de políticas públicas contribui para a esperança no futuro, a descrença numa sociedade onde os valores se concentram na quantidade do patrimônio de cada um. A exemplo de outros países com baixa qualidade na instrução, no Brasil as pessoas foram sempre valorizadas pelo que possuem. O caráter, as virtudes, o conhecimento, a capacidade criativa, o amor, são valores subalternos ao poder econômico e ao ter. Digo isso com a plena consciência de quem sentiu na pele, porque sou uma pessoa de origem humilde, que sentiu o peso das necessidades básicas.
É inegável que sempre existiu uma promíscua relação entre o poder do estado e o poder econômico. Prova disso está na revogada adoção do voto censitário, onde só votava aquele que tinha dinheiro. Sem contar com o famigerado voto de cabresto que sempre existiu e acredita-se que ainda existe. Por outro lado, a bandidagem, a corrupção, o aparelhamento do estado, o abuso de autoridade e a certeza da impunidade daqueles que pertencem à cúpula do poder, seja através do poder político ou econômico, sempre alimentando a crença e a certeza de que é preciso possuir bens para se ter um tratamento digno e respeitoso dos amigos. Não bastava apenas ser correto para conquistar respeito e dignidade na sociedade. Cada um vale o que tem, esse é o lema mentalizado até hoje. Verdadeiro campo fértil para a violência e a contra violência. Para o ataque e o contra ataque.
Agora, como resposta a um número cada vez maior de crimes praticados por menores de dezoito anos, alheia às suas responsabilidades diante desse quadro caótico de violência ao qual assistimos todos os dias, a sociedade elegeu os menores como bodes expiatórios e clama pela redução pura e simplesmente da maioridade como resposta à questão da violência no país. Passa-se uma borracha no passado e pronto, problema resolvido. Poe-se todo mundo na cadeia e tudo aqui fora fica em paz e todos com a consciência do dever cumprido. Seguindo a filosofia de que do lado de fora permaneçam apenas as pessoas de "bem" convivendo em tranquila harmonia.
Muito bem. Vamos esperar para ver até onde essa medida irá nos levar. Porque eu acredito que não haverá paz neste mundo, enquanto a sociedade atual considerar natural e correto uma pessoa ter o privilégio de acumular e possuir sozinha um patrimônio avaliado em vinte bilhões de dólares, enquanto a grande maioria é constituída por pobres miseráveis que morrem porque não tem o mínimo necessário para viver. Muitos morrem exatamente por falta de atendimento médico decente e digno nos hospitais públicos. Isso não é violência. Isso é considerado destino.
Eu insisto que a violência gerada pelas injustiças sociais é que fomenta ainda mais violência. Enquanto o estado se destinar apenas a servir o poder econômico, alimentando uma política eivada de hipocrisias, como as constantes propagandas do pão e do circo, infelizmente, o fim da violência será sempre um sonho impossível de se realizar nesse país. Porque apenas presídios não serão suficientes para por fim a tanto derramamento de sangue.
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