Juiz é Deus?

 
                
                     
 
                Uma notícia que me causou muita indignação, ao longo da última semana, foi um caso que repercutiu bastante nas redes sociais, onde uma Agente de Trânsito da cidade do Rio de Janeiro, Luciana Tamburini, foi condenada a pagar uma indenização de cinco mil reais, por teoricamente ter desacatado um Juiz, o qual fora abordado numa dessas Operações da Lei Seca. A "Justiça" condenou a referida Agente a pagar uma multa tão elevada, equivalente a quase o dobro de seus vencimentos, apenas porque o Juiz alegou que se sentiu ofendido com uma frase que a moça teria dito durante um breve bate boca com ele. Ela teria dito que ele "era um Juiz, mas que não era Deus".
              Consta que o Juiz, no momento da abordagem, guiava um carro sem placa e estava sem os documentos obrigatórios. Houve um desentendimento verbal entre o juiz e a Agente de Trânsito, o que a levou, inclusive, a receber uma ordem de prisão por parte do referido magistrado. O caso foi parar numa delegacia, pois o Magistrado se  sentiu ofendido pela Agente Luciana, a qual declarou que ele "era Juiz, mas não era Deus". Por essa razão, Luciana foi condenada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a pagar uma vultosa e incomum indenização ao Juiz, e como fundamento para a condenação, o Desembargador alegou o seguinte: "Ao apregoar que o demandado era 'juiz, mas não Deus', a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade".
              Agora, vamos ler o que estabelecem as normas penais sobre essa matéria e vejam quem desacatou quem e, sobretudo, se encontram fundamento para tipificar a atitude da referida Agente de Trânsito, que se encontrava, inclusive, no legítimo exercício de sua função:
              Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
             Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.
Fica evidente que o objeto material desse delito se encontra em desacatar funcionário público, no exercício de suas funções.
              Nélson Hungria, com bastante precisão, no volume IX/421, in Comentários, esclarece:
"A ofensa constitutiva do desacato é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário. É a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos etc."             Isso me leva a deduzir que a crítica ou mesmo a censura, ainda que veementes, não constitui desacato, desde que, obviamente, não se apresentem de forma injuriosa.
O elemento subjetivo nesse tipo de crime é o dolo, consubstanciado na vontade de "agir", uma vez que o agente tem por objetivo desrespeitar ou desprestigiar a função pública exercida pela vítima.

                          Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
                        § 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:
                        I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;
                       II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
                               
                        Art. 141. II contra funcionário público, em razão de suas funções;
                    
                     Ora, este artigo só incide  se a ofensa tiver ligação direta com a função pública e ativa do servidor. No Desacato (Art. 331-CP) o funcionário público presencia a ofensa que lhe é dirigida e nos crimes contra a sua honra ele não se encontra no lugar da ofensa. Como se pode observar, no Direito há interpretação para tudo o quanto é gosto.
                      Eu, por exemplo, entendo que o Juiz não estava no exercício de sua função judicante. Naquele momento ele se encontrava ali como um cidadão comum, que conduzia irregularmente o seu veículo e estava infringindo a lei de trânsito. Ademais, de tão obvia que deveria ser a conclusão de que nenhum Juiz é Deus, a interpretação mais plausível para essa frase deveria ser a de que ali se encontrava mesmo um ser humano e que, por isso mesmo, seria coisa natural o erro cometido, pois todo o ser humano é passível de cometer erro. Porque errar é coisa de ser humano, não de Deus.
 
                     Apenas para efeito de ilustração, outro dia,  na qualidade de Oficial de Justiça que sou, no legítimo exercício de minha função pública, fui cumprir um mandadojudicial de busca e apreensão de um veículo que se encontrava em poder de um Promotor de Justiça. Ao ser abordado, tudo conforme as formalidadesde previstas na lei, o promotor ficou bastante alterado e tentou argumentar para que eu deixasse para cumprir o mandado numa outra oportunidade, em outro dia quem sabe, que ele iria pessoalmente entregar o carro para evitar qualquer forma de constrangimento para ele. Como não teve êxito, ele mudou de atitude e disse que tudo bem, mas fez questão de frisar que nós do Poder Judiciário somos os deuses, não consideramos ninguém. Esbravejou pra lá e pra cá, mas enfim, entregou-me a chave do carro e retirou todos os seus pertences que ali se encontravam e foi embora. Na verdade, entendi que naquele momento, o Promotor estava estava em desequilíbrio emocional, devido aquela situação, de maneira que eu achei por bem desconsiderar todas as suas grosserias, e sequer fiz qualquer referência aos fatos no conteúdo da minha certidão.
                                
                     É princípio legal o dever de respeitar toda e qualquer decisão judicial, mas nada nos obriga a concordar ou nos conformar com ela. Neste caso específico, aliás, como em tantos outros, eu não concordo e não me conformo. Porque tudo é uma questão de interpretação e depende muito da exegese utilidada pelo julgador, que nesse caso, interpretou que a Agente teria "zombado" do Juiz, afirmando que ele não era Deus. Na minha concepção, entendo que ela reconheceu a grandeza do cargo ocupado pelo magistrado, apenas disse que ele não era Deus, isto é, que seu cargo apesar de ser digno de todo o respeito, infelizmente,  era inferior ao cargo de Deus. Ao meu ver, a comparação foi salutar, pois comparou um Juiz a Deus, a quem merece toda a honra e toda a glória.
                      
                      Na verdade, os juizes são apenas seres humanos passíveis de cometer erros como qualquer um de nós. E, por mais que muitos deles acreditem que são mesmo deuses, eles jamais saberão se conduzir com a sabedoria necessária nem compreender os desíguínios da verdadeira justiça divina. Porque nenhuma autoridade aqui nesse mundo, por mais elevado que seja o seu cargo, pode se considerar acima do bem e do mal. Elevado é aquele que, embora ocupe um cargo de tamanha relevância, tenha a humildade de reconhecer suas faltas e, de repente,  até aplaudir a dignidade e a postura que teve uma agente simples, que mesmo diante de tal autoridade, não se curvou nem prevaricou, mantendo-se firme no cumprimento de seu dever.
                      Neste caso, o mínimo que se esperava de um Magistrado era uma conduta reconhecedora de sua falta. Primeiro, porque antes de tentar qualquer argumentação perante a autoridade do Estado,  que ali estava representada na pessoa da Agente Luciana, a qual se encontrava revestida dessa autoridade, no estrito cumprimento de seu dever, o juiz deveria reconhecer que estava errado, pois que sua conduta infringia o regulamento de trânsito, o qual deve ser aplicado a todos, indistintamente. Se contra fatos não existem argumentos, o melhor, ao meu ver, seria acatar a merecida punição prevista em lei, e ponto final. Principalmente, por se tratar de um Juiz, de quem a sociedade espera sempre um bom exemplo. 
                     Por outro lado, eu gostaria de lembrar que a recíproca também é verdadeira, que Deus não é Juiz - pelo menos não dessa qualidade. Porque Deus não seria Deus se  fosse flagrado infringindo leis ou por dirigir um veículo sem placa e sem documentos.
                     Não, não Agente Luciana, você não cometeu nenhum erro. Tenha a consciência do dever cumprido, pois a maioria da sociedade concorda com você, tanto que são muitos aqueles que estão contribuindo para pagar a sua indenização. De maneira que você não foi condenada sozinha, mas toda a sociedade que clama por justiça nesse país. Parabéns, Agente Luciana, e que o Verdadeiro Deus a proteja, e evite que pessoas como esse juiz cruzem o seu caminho.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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